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  1. Um sopro

    segunda-feira, 4 de maio de 2020


    UM SOPRO
    A escrita pesa. A memória corta. O cotidiano tem sido perigoso e nós ainda estamos vivos para escrever a história de nossas vidas e dos outros que ficam e que se vão num sopro, num instante de passagem, num abrir e fechar dos olhos somos roubados e nos levam a convivência de que amamos para nunca mais voltar a sorrir do nosso lado.

    A correria e a movimentação de carros pelas ruas do bairro anunciavam a inquietação das pessoas perante mais um conflito sangrento no bairro. De onde moro deu para escutar as rajadas de bala que ocorreu naquela noite e que veio vitimar prematuramente mais um jovem.

    Não era mais um jovem, assim como nunca é mais. Menos um jovem para viver, sonhar, lutar, brincas, amar, sorrir e viver. Mais um jovem para sustentar as afirmativas técnicas das estatísticas de quem enxerga a periferia e seus corpos apenas como números e laboratórios.

    Evitei olhar as notícias e as redes sociais temendo conhecer o jovem que acabara de perder a vida, pois não é fácil continuar uma noite de sono depois de um corte que sangra em tuas memórias e afetações. Não demorou muito para que esse presságio se tornasse uma realidade bem diante dos meus olhos ao ver a foto desse jovem circulando pelas redes sociais de amigos que lamentavam e choravam pela perca de mais um amigo.

    Um filme se inicia em tua cabeça e você faz uma regressão em suas memórias afetivas que agora lembram e fortificam os momentos que foram possíveis com essa pessoa que agora já não está entre nós de corpo presente, mas viverá nas lembranças e nas fotografias captadas pelas nossas memórias. É assim que quase sempre me vejo perante os cortes na alma, ou escrevo ou me calo. Hoje preferi escrever e fotografar minha memória para que não se perca diante meus esquecimentos.

    Ninguém está preparado para perder alguém que ama, admira e que ainda nem mesmo começou a viver. A temporalidade de nossa existência nos coloca na angustia de percebermos a vida dentro dos sentidos lógicos que não sustentam a dor e o sofrimento de seguir a vida depois do luto.

    Dos meus lugares para escrever essas linhas hoje escolhi o de um professor que acaba de perder um ex-aluno para a absurda lei da violência que nos segue a julgar, sem nenhum sentido, sem nenhuma apelação, sem sabermos a quem recorrer. Perdi a presença do jovem que há seis anos atrás era aquela criança que chegava para mim perguntando se tinha vaga nas aulas de bateria.

    Fui professor desse jovem nas aulas de iniciação a musicalização num projeto que era executado pelo Movimento Social FOME que tinha como objetivos apresentar para as crianças, jovens e adultos do bairro um primeiro contato com os instrumentos musicais e os processos de musicalização.

    Eu era o professor de iniciação a bateria e tinha uma turma entre dez alunos, incluindo crianças, jovens e adultos. Uma dessas crianças era Victor. Sempre empolgado e alegre com os amigos da aula de bateria, logo Victor dominou as primeiras noções básicas de ser um baterista. As aulas se davam na imanência de percebermos as diferenças que cada um trazia e assim fazer das diferenças novos caminhos para a aprendizagem coletiva.

    Ser esse educador não formal que usa o lado de fora da escola para concretizar os sonhos tem esse preço de ser afetado e construir essas narrativas a partir da experiência múltipla do cotidiano. Diante essa perda não é fácil contextualizar as experiências como educador, mas sim, é forte demais para reafirmar que a educação que construímos fora da escola tem nos proporcionado a percepção carinhosa de sentir cada criança, jovem e adulto em sua total vontade de potência.

    Tive o meu momento oportuno para fazer a diferença na vida de alguém e o fiz com muito amor e dedicação. Continuarei nessa luta, insistirei na importância de nossas narrativas educacionais dentro e fora da periferia e sempre lembrarei com muito carinho do Vitim que se garantia na bateria e que até hoje tenho os vídeos dos momentos vividos nas aulas de bateria.

    Que a terra lhe seja leve Victor
    Que o tempo cure a ferida que hoje se abriu
    Que sua mãezinha e seu paizinho logo encontre conforto no coração
    Que seu sorriso nos blinde do mal
    Ainda há amor na periferia
    Enquanto estivermos de pé lutaremos por dias melhores
    Sem maldade no coração você nos deixa
    Assim seja a vida
    Um sopro
       


  2. Pra Ela

    segunda-feira, 27 de abril de 2020



    Aquela tarde de quinta-feira estava mesmo diferente, primeiro pelo fato da euforia que estávamos sentindo com a reunião de moradores do bairro para decidir algumas posições referentes a um projeto que a prefeitura estava implantando no território. Essa reunião reuniu prefeito e moradores a fim de iniciar diálogos e esclarecimentos referentes a esse projeto municipal que seria implanto no bairro e que iria atingir diretamente famílias que morassem ao redor de uma das lagoas localizadas dentro do bairro.

    O segundo motivo ou acontecimento dessa quinta-feira pelo qual mudou e reativou as novas cores num Movimento onde pulsava vermelho e preto foi decisivo para que saindo dessa reunião eu me desse conta de que o militante estava apaixonado.

    Mas voltando as pautas da reunião comunitária, pontuamos enquanto jovens e moradores daquele bairro nosso incomodo e resistência diante o projeto apresentado pelos secretários da prefeitura que retiraria famílias que morassem em torno da lagoa. O projeto foi apresentado e foi ganhando uma maquiagem ao longo dos tempos para acalmar os ânimos da população que já se mostrava bem incomoda pela ideia e apresentação da proposta de tal projeto que ao final de tudo se configurava como um dispositivo higienizador para com essas famílias periféricas que há mais de vinte anos tinham construído suas moradias e estabelecido seus laços afetivos e culturais com o espaço projeto para ser “revitalizado”.

    Representantes de famílias atingidas diretamente pelo projeto de “revitalização e urbanização do entorno da lagoa” estavam ainda sem entender muita coisa. Lideranças comunitárias eram cooptadas pela gestão municipal e tentavam a todo custo e apelação desconstruir nossas falas, e sempre arquitetavam maneiras para nos colocar contra a comunidade.

    Foi uma tarde de nervos à flor da pele, e naquele momento eu percebia que a luta seria desgastante com a gestão municipal e com as estratégias de cooptação politiqueira que se armava naquele cenário de medo e ameaças vindo da prefeitura.

    Reunião encerrada com a gestão municipal na sede da associação comunitária de moradores, ficamos ainda trocando algumas ideias e encaminhando pautas, algumas pessoas já se deslocavam para suas casas, outras permaneciam de conversas com representantes da prefeitura municipal na calçada e nós permanecíamos concentrados a algumas falas apresentadas naquela tarde.

    Diante do movimento contínuo de pessoas entrando e saindo da associação, ela surge e vem caminhando em nossa direção. Na verdade ela já nos observava de longe de outros momentos, de outros dias e de outras lutas. Ela vem cheia de posições e agendas de trabalho a cumprir.

    Alguém que estava próximo a nós apresentou aquela mulher que eu já conhecia de vista transitando pelo bairro. Meus olhos brilhavam ao sentir as veias abertas que ainda circulavam o sangue quente de um romantismo rebelde. Cuidei de pegar o seu contato e logo à noite nós já estávamos trocando mensagens sobre nossas lutas travadas no meio político-social, que na verdade eram apenas pretextos para nossa aproximação.

    Não poderia ter sido mais intenso e marcante aquele primeiro contato que nasceu nas reuniões da associação do bairro.

    Naquela tarde de quinta-feira, junho de 2013 a associação comunitária Benedito Tonho foi cenário para esse amor, para as lutas e para as nossas revoluções diárias que sonhamos e concretizamos num novo romance que dura até os dias de hoje. Dos encontros que as lutas nos traz, me trouxe a companheira de uma vida.

    Ainda há muito o que escrever pra ela e por ela.
    Ainda estamos na luta
    Ainda revolucionamos o companheirismo
    Ainda militamos no amor
    Ser você esse amor





  3. Carta 1: Para Paulo

    quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

    Folheando um romance de Cortázar me veio tua lembrança e saudades daqueles momentos de conversas profundas e ao mesmo tempo rasas pela dinâmica que nossas angústias ocupavam às noites de filosofia naquelas salas de aula, que hoje me aterrorizam. 

    O jogo da amarelinha foi o caminho para essa escrita que há tempos planejo e sempre adio para o futuro. Futuro que questionávamos e que hoje já é nosso presente. 

    Essas posturas que aprendemos em sala de aula foram valiosas para percebermos o quanto nossa filosofia e literatura foram fundamentais para esse salto no escuro de nossa formação acadêmica.

    Ainda ontem comecei a ler e reler alguns escritos de Schopenhauer, e a memória das tardes de terça-feira no grupo de estudos sobre filosofia da existência logo emergiram como o realismo da vida que que Schopenhauer imprimia em sua escritura. 

    Demorou um tempo considerável para que às leituras e as reflexões filosóficas retornassem a esse devir dos estudos e das angústias amargas do nosso ser. 

    Há tempos não respirava e não parava diante do ser. Ser era, é, ou foi. Uma reflexão corriqueira nesse sentido de sacrificar a metafísica quase sempre se torna um retorno ao mesmo.

    O certo é que depois desse ser e tempo me vieram como enxurrada a náusea, assim como a revolta e as memórias do subsolo.

    Reencontrar Sartre, Camus, Heidegger, Schopenhauer, Dostoiévski e Kafka numa única semana é fenomenologicamente estranho e perigoso. 

    Diante de tantos encontros, estamos nós desencontrados. A amizade continua Paulo. Mesmo sabendo que a distância definha a relação mais próxima, essa escritura simboliza essa escavação de encontro ao nada.

    Retomei a escrita dessa nossa filosofia que criou como vontade de potência, o mundo como vontade e representação. 



  4. É campeão

    terça-feira, 21 de janeiro de 2020


    É campeão!
    É campeão!
    É campeão!
    É campeão!


    E aqueles gritos de alegria singular logo passaram a ressoar em alto bom som por entre os blocos de concretos do conjunto habitacional.
    Os campeões fazem do esporte suas linhas de fuga para um mundo possível, o mundo das finais de copa mundo, cheias de desejos, aventuras e possibilidades para que em qualquer momento o jogo possa virar.

    - Sabe a sensação de uma final, onde você quer dar o seu melhor?

    Pois é, parece que a final de um simples jogo de futebol de criança consegue transmitir muito além do que é esperado numa grande final de futebol onde os adultos são os atacantes.
    Esse ser criança é uma continuidade do imprevisto e construído dentro das multiplicidades dos desejos pelo risco de vir a ser criança.
    O grito que atravessa o sentimento de ser campeão logo se traduz pelas conexões coletivas por serem os campeões, e não permitirem que o sentimento de rivalidade ultrapasse as quadras e o campo.
    É assim que pensamos as micropolíticas construídas nas margens do futebol de criança, mas é também assim que todas as nossas perspectivas controladoras caem por terra quando fixamos o olhar para um centro de atenção e de imediato logo tudo muda.
    A mudança é corriqueira e ela tem nome: Criança.
    A vontade de potência que nos ensina a crer e fazer com autonomia.
    O sentimento de campeão gritado com os pulmões cheios de alegria simbolizava mais uma vitória da coletividade frente às barreiras territoriais que impedem adultos de festejar o sentimento de ser CAMPEÃO.
    Nessa final a FIFA não entra, e é melhor assim.
    Não há acordos com patrocinadores e muito menos o destaque para o melhor jogador.
    Não há o passe mais caro do mercado.
    Não há o mercado para ditar as regras do jogo.
    Não há a imprensa tendenciosa.
    Há os gritos.
    Há torcida, batuque e muitos técnicos para mediar uma ideia e estratégia para o time.
    O sangue ferve e cada um quer dar o melhor que pode.
    É final do campeonato de 4 times da mesma quebrada, é sangue no olho.
    O pé descalço já está calejado.
    E no final É CAMPEÃO


  5. Cuidado com minha PÓesia

    segunda-feira, 16 de outubro de 2017

    Senhoras e senhores
    Não me responsabilizo 
    Pelos danos futuros 
    Que poderá causar
    O meu PÓema 
    Em sua tradicional-mente poética
    De absorver, inspirar e recitar
    Versos carregados de PÓesia.

    Já imaginou...
    Biqueiras literárias espalhadas
    Por toda perifa.

    Livro engatilhado na mão
    Dedo nervoso, parágrafo por parágrafo
    E... Pow...
    Mais um livro finalizado.

    Atribulado até umas horas 
    Depois de ler Dostoiévski, 
    Kafka e Nietzsche.

    O moleque se impregnou
    Quando descobriu Foucault
    Na biblioteca da escola.
    Meio mundo de palavras 
    Ali paradas, esperando serem devoradas
    Por alguém que tem FOME
    FOME literária.